sábado, 27 de setembro de 2008

GERENCIAMENTO DE RISCO EM CRISE: OS MISTÉRIOS DO EXTREMISTÃO



"Deixa-os, são condutores cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova"
Mateus, 15:14

Os problemas que hoje afetam o mercado financeiro norte-americano - com os previsíveis reflexos em outros países - contemplam todos os ingredientes clássicos de uma crise financeira: excesso de liquidez nos mercados internacionais e conseqüente expansão do crédito fácil e barato; otimismo ingênuo em um determinado setor de mercado, no caso o imobi
liário, levando muitos a crer que "os preços sempre sobem"; agentes do mercado aproveitando-se do crédito fácil e da elevada liquidez para estruturar operações financeiras excessivamente alavancadas e, last but not least, a percepção de que os riscos envolvidos nessas operações eram aceitáveis e estavam perfeitamente sob controle. Olhando em retrospecto, é evidente que os riscos não eram aceitáveis e muito menos estavam sob controle. E aqui chegamos ao ponto do post de hoje: se o gerenciamento de riscos é justamente a principal linha de defesa contra perdas catastróficas, como é possível que bancos de investimento, securitizadoras e agencias de rating tenham falhado tão estrondosamente na avaliação de risco dos instrumentos derivativos lastreados no crédito imobiliário?

No entender deste modesto blogueiro, a raiz do problema em questão é a seguinte: os modelos de gerenciamento de risco empregados pelas ins
tituições financeiras estão amparados em uma metodologia estatística incapaz de estimar o impacto de eventos extremos sobre um portfólio de investimentos e por isso deixar-se guiar por eles nas decisões sobre investimentos equivale a deixar-se guiar pelo cego da proverbial parábola. Esta percepção foi levantada, com maestria, por Nicholas TALEB ainda antes da publicação de seu best-seller mais conhecido - no Brasil, desconfio que mais falado do que conhecido propriamente - The Black Swan. No seu livro anterior, Fooled by Randomness (1a edição de 2001), ele expõe com muita clareza a premissa básica de sua compreensão do mercado e da vida em geral: eventos imprevisíveis e inesperados ocorrem com freqüência bem maior do que imaginamos e eles podem ter um impacto desproporcional em nossas vidas, seja para melhor, seja para pior. Mas exatamente qual seria o equivoco das metodologias empregadas atualmente no gerenciamento de risco? Vou tentar ilustrar da maneira mais simples possível com um exemplo ocorrido esta semana no mercado brasileiro: o tombo de -35% nas ações da Sadia, ocorrido literalmente da noite para o
dia.

Olhe o gráfico de barras : ele contém os últimos quarenta dias de movimentação dos preços de SDIA4. A avaliação estatística do risco implícito em um investimento nesse papel invariavelmente parte da determinação do desvio padrão da variação de preços em relação à mediana do período avaliado (a mediana é o valor que divide ao meio os dados de uma amostra, metade dos dados terão valor igual ou superior à mediana e metade terão valor igual ou inferior à ela). Se fizermos a distribuição das variações percentuais nos preços de SDIA4 a partir da mediana - calculada em termos absolutos em 1,54% - no período analisado e plotarmos os dados em um histograma obteremos o nosso segundo gráfico. Nele observa-se que a maioria das variações de preço tendem a agrupar-se próximo à mediana, isto é, as variações percentuais no preço de fechamento do papel tendem a ocorrer dentro de limites relativamente estreitos de 1 a 2X a mediana - de até 3,08% para mais ou para menos. Veja que em quarenta dias de negociação ocorreu apenas uma variação positiva superior a 5 vezes o valor da mediana (7,7%) e uma única variação negativa inferior a - 5X o valor da mediana (-7,7%). Em quase qualquer série aleatória de dados que se tome, haverá a tendência das variações de magnitude da série serem mais numerosas ao redor da mediana, decrescendo em ambas a direções (para mais e para menos) conforme vão se afastado da mesma. Esta característica é chamada de distribuição normal da série de dados.

A distribuição normal serve como premissa para o cálculo do mais importante indicador estatístico utilizado na avaliação de risco de u
m portfólio: o desvio padrão. O desvio padrão é, em última análise, um indicador da distribuição das variações de magnitude de uma série de dados ao redor da mediana, assumindo que a série em questão apresenta uma distribuição normal. Esse indicador (assinalado pela legra grega Sigma) permite, no nosso exemplo, calcular intervalos de confiança relativamente às variações de preços de uma ação, de acordo com parâmetros que estão expostos no terceiro gráfico. No caso de SDIA4 o cálculo do desvio padrão nos dará um valor percentual de 6,49%. Assumindo-se uma distribuição normal, dir-se-á que 68,2% das variações de preço desse papel estarão situadas dentro do intervalo de 1 desvio-padrão, para mais ou para menos (áreas em azul mais escuro no terceiro gráfico), isto é, estarão situadas entre -6,49% e +6,49%. Do mesmo modo pode-se estimar que 99,6% das variações de preço estarão situadas dentro do intervalo de até 3 desvios-padrão, para mais ou para menos, isto é estarão situadas entre -19,4% e +19,4%.

A grande falha dessa metodologia, segundo TALEB, é que ela parte da premissa de que as variações de preços dos ativos financeiros podem ser (mais ou menos) enquadrados dentro de uma distribuição normal, o que leva seus usuários a acreditarem que os riscos envolvidos em operação com estes ativos podem ser seguramente mensurados dentro de intervalos de confiança previsíveis. Essa premissa, todavia, demonstra-se incompatível com o que se observa no dia-a-dia de funcionamento dos mercados. Tome-se de novo o caso de SDIA4. Imagine que é você é um investidor interessado em comprar o papel e decida rodar no Excel uma análise do desvio padrão das variações de preço de SDIA4 até o dia 24/09 - antes, portanto da queda catastrófica da sexta-feira, dia 26/09. Pegando a mesma série de dados que eu venho utilizando, você verifica que até o referido dia 24 o desvio-padrão era de 3,36%, logo, pensa você, é possível estimar com 99,6% de confiança (3 desvios-padrão) que o papel não irá cair mais do que 10,08% em um único dia. Confiante, você compra SDIA4 no dia 25/09 pelo preço de fechamento de R$ 9,30. E no dia seguinte observa, incrédulo e em pânico, a cotação abrir a R$ 6,80, cair até R$ 5,82 e fechar cravada em R$ 6,00.

O quê aconteceu? Como é possível o maldito papel movimentar-se em uma magnitude de mais de 9,5 Sigma? Estatisticamente isso é quase impossível! É mais fácil morrer atingido por um raio do que um movimento de 9,5 Sigma atingir um papel do meu portfólio! Bom, aconteceu que a variação de preços no mercado não se submete à uma distribuição normal, estatisticamente previsível. Os preços dos ativos estão constantemente sujeitos a variações abruptas e extremas, às vezes na casa das dezenas de Sigma, porque influenciados por uma quantidade quase infinita de variáveis. No caso da Sadia, quem imaginaria que o diretor financeiro de uma das maiores e mais respeitadas empresas do país, ignoraria completamente os limites de posição de hedge cambial aprovados pelo Conselho de Administração e passaria a especular pesadamente nesse mercado? Pois foi o que aconteceu, com o impacto que se viu nas cotações - um clássico Black Swan: totalmente inesperado, vindo de onde jamais se imaginou que viesse, impossível de antever e causador de um impacto relevante. Pense nisso cada vez que ouvir um "especialista" falar em intervalo de confiança no portfólio...



2 comentários:

Bollingerdude disse...

Parabéns mais uma vez cara, muito bom o seu artigo sobre manejo de risco.
Abs,

Anônimo disse...

o que eu estava procurando, obrigado